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EntrevistaSobre um curso02/07/2025
O curso nasceu da necessidade urgente de apoiar profissionais de saúde e criadores de conteúdos em saúde que, cada vez mais, precisam de comunicar com utentes que não falam português. Com o aumento da globalização e migração, as barreiras linguísticas tornaram-se um obstáculo real ao acesso equitativo aos cuidados de saúde.
Face à escassez de intérpretes e outras formas de mediação linguística, é comum recorrer a ferramentas baseadas em Inteligência Artificial (IA), como o Google Translate, SayHi ou o ChatGPT. Contudo, usar estas ferramentas em “piloto automático” pode criar uma falsa sensação de segurança. A nossa investigação mostra que o uso acrítico destas tecnologias pode comprometer a privacidade dos utentes e levar a erros de comunicação com consequências graves: diagnósticos errados, tratamentos incorretos ou até situações de risco de vida.
Este curso foi desenvolvido em parceria com a Universidade de Leiden e com especialistas de várias áreas — saúde, tradução, tecnologia e comunidades migrantes — com o objetivo de promover o uso responsável e informado da tradução automática. Queremos ajudar os profissionais a tirar o melhor proveito destas ferramentas, sem pôr em risco os cuidados prestados.
Sim, acreditamos que este curso pode ter um impacto muito positivo no sistema de saúde português — inclusive a médio e longo prazo. Atualmente, cerca de meio milhão de migrantes em Portugal não domina o português o suficiente para falar sobre questões de saúde — uma área onde a precisão e a sensibilidade na comunicação são essenciais. E nem todos os profissionais de saúde têm conhecimentos linguísticos ou disponibilidade para comunicar numa língua que o utente compreenda. Em hospitais como os de Évora ou Amadora-Sintra, comunicar com pessoas que não falam português é um desafio diário, e ferramentas como o Google Translate continuam a ser o recurso mais utilizado. Segundo dados noticiados ainda em 2022, em centros de saúde como o do Martim Moniz, em Lisboa, cerca de 30% dos utentes eram estrangeiros, representando mais de 90 nacionalidades diferentes — número que, ao que tudo indica, terá aumentado desde então.
Este curso contribui com estratégias práticas para melhorar a qualidade da comunicação clínica, reduzir o stress dos profissionais de saúde e apoiar decisões políticas mais informadas sobre acessibilidade linguística. Contudo, é importante sublinhar que formações como esta, por si só, não são suficientes. Elas não podem ser usadas como um paliativo tecnológico ou pedagógico para colmatar falhas estruturais. É fundamental garantir que a responsabilidade de ultrapassar as barreiras linguísticas não recaia exclusivamente sobre as populações migrantes ou sobre os profissionais de saúde, mas que seja assumida pelas instituições de forma sistemática e estruturada. São necessárias políticas públicas robustas, financiamento adequado e mecanismos institucionais que assegurem o direito à comunicação em saúde — incluindo o acesso a tecnologias linguísticas desenvolvidas de forma ética e inclusiva, materiais traduzidos com qualidade, e mediadores culturais qualificados. Só assim conseguiremos construir um sistema de saúde verdadeiramente acessível, seguro e justo, à altura da diversidade linguística e cultural da população portuguesa atual.
Sem dúvida. Como referi, usar ferramentas de tradução automática é hoje parte do dia a dia de muitos profissionais — mas sem formação, o risco de erro é elevado.
A literacia em tradução com IA é uma competência transversal, como a ética, a segurança do doente ou a comunicação empática. Como dizemos no curso, usar o Google Translate é como usar um bisturi: pode ajudar muito — ou causar danos — dependendo de quem o usa e como o usa.
Identificámos cinco grandes lacunas que este curso procura colmatar. A primeira é a falta de formação sobre tradução automática — muitos profissionais utilizam estas ferramentas sem conhecerem bem os seus limites nem o seu verdadeiro potencial.
A segunda prende-se com o excesso de confiança na fluência: como as traduções geradas por inteligência artificial soam, à primeira vista, corretas, é fácil assumir que estão certas. Mas isso nem sempre é verdade, e os erros podem ser perigosos. Por exemplo, ao traduzir a frase “Doctor Pat poured the water from the bottle into the cup until it was empty”, o Google Translate pode gerar uma tradução ambígua e até enviesada do ponto de vista de género. Afinal, ficou vazio o copo ou a garrafa? E trata-se do médico ou da médica? Tentem traduzir esta frase para português e vejam por vocês mesmos. No dia a dia, este tipo de erro até pode provocar um sorriso, mas em contexto clínico pode comprometer seriamente a compreensão — e, com isso, afetar o diagnóstico ou o tratamento. Outros exemplos reais incluem a troca de unidades de medida — já houve situações em que “5 gramas” foram traduzidos como “5 onças”, ou em que a sigla HR (heart rate - frequência cardíaca) foi interpretada como “recursos humanos” (Human Resources). Nos Estados Unidos, durante a campanha de vacinação contra a COVID-19, uma tradução incorreta feita com o Google Translate levou um site oficial de saúde a informar, em espanhol, que a vacina não era obrigatória — quando o objetivo era dizer precisamente o contrário.
A terceira lacuna diz respeito ao acesso e à equidade: nem todos os migrantes têm telemóvel com dados móveis, acesso à internet em unidades de saúde, ou literacia digital suficiente para utilizar estas ferramentas. A quarta está relacionada com a privacidade: tudo o que é introduzido em plataformas como o Google Translate pode ser armazenado nos seus servidores, incluindo dados clínicos sensíveis. Por fim, há uma clara falta de apoio a algumas das línguas faladas por pessoas migrantes em Portugal, como o nepalês ou o bengali, que continuam a ser mal suportadas pelas ferramentas de tradução mais populares.
O curso oferece alternativas seguras e práticas para lidar com estes desafios. Entre elas, técnicas de escrita clara adaptada à tradução automática (chamadas machine translation-friendly writing), procedimentos como o teach-back (pedir ao paciente que repita a informação com as suas próprias palavras para confirmar a compreensão), ciclos de feedback e o uso de aplicações com frases validadas por especialistas em saúde e tradução. Estas soluções práticas foram desenhadas para apoiar os profissionais no terreno — protegendo tanto o utente como o sistema de saúde.
Sim, este é um dos focos centrais do curso. Explicamos que ferramentas baseadas em inteligência artificial, embora úteis em várias situações, podem armazenar e reutilizar os dados introduzidos pelos utilizadores. Ao escrever ou digitalizar, por exemplo, o nome de um paciente ou os resultados de exames nestas plataformas, esta informação deixa de estar protegida e pode ser usada para treinar os modelos destas empresas, de acordo com os respetivos termos de uso. No curso, mostramos como evitar a introdução de dados identificáveis, como anonimizar conteúdos clínicos sempre que possível, e como optar por ferramentas mais seguras, avaliando os riscos de acordo com o tipo de informação e o contexto em que é utilizada.
O curso é útil em muitas situações do dia a dia, tanto em contexto clínico como comunitário. As competências que os participantes adquirem podem ser aplicadas no atendimento na receção de unidades de saúde, durante consultas médicas e de enfermagem, na tradução de formulários e termos de consentimento, no envio de resultados de exames, ou ainda em campanhas de saúde pública sobre vacinação, gravidez, higiene ou saúde mental. É também particularmente relevante em momentos de crise, como a gestão de surtos ou emergências sanitárias, em que é crucial garantir que a informação sobre como se proteger a si e aos outros chegue a todos, independentemente da língua que falam.
Este curso foi pensado para todos os profissionais da área da saúde que estão na linha da frente da comunicação com pessoas migrantes, seja presencialmente ou à distância, em interações síncronas ou assíncronas. Destina-se a médicos, enfermeiros e técnicos de diagnóstico, mas também a profissionais administrativos e de receção, bem como a responsáveis pela comunicação institucional.
Será igualmente do interesse de mediadores culturais, intérpretes e representantes de associações migrantes que prestam apoio direto a utentes em contextos multilingues e que, muitas vezes, são chamados a intermediar a comunicação em situações clínicas sensíveis. Além disso, é útil para tradutores, linguistas e profissionais que desenvolvem soluções tecnológicas para o setor da saúde, uma vez que fornece orientações práticas sobre como adaptar conteúdos à tradução automática, melhorar a fiabilidade dos sistemas e responder às necessidades linguísticas de públicos diversos. É também especialmente relevante para decisores públicos interessados em promover a acessibilidade linguística e garantir que os serviços de saúde sejam verdadeiramente inclusivos e equitativos.
Sim, estamos a preparar novos cursos e microcursos que abordam diferentes desafios da comunicação em saúde em contextos multilingues e digitais. Um dos cursos em desenvolvimento centra-se na comunicação com populações vulneráveis, oferecendo estratégias para adaptar mensagens de saúde a públicos com diferentes níveis de literacia linguística, cultural e digital. Outro curso irá explorar as questões éticas e regulatórias associadas à utilização da IA na comunicação em saúde, ajudando profissionais e instituições a tomar decisões mais informadas e responsáveis. Estamos também a desenvolver um curso sobre prompt engineering aplicado à saúde, que ensinará a redigir comandos eficazes e seguros para ferramentas baseadas em IA, como o ChatGPT.
Para além da formação, estamos a criar uma aplicação de tradução com frases simples, clinicamente relevantes e validadas por especialistas. Esta app foi pensada como uma alternativa segura ao uso cego da tradução automática, oferecendo soluções específicas para contextos de alto risco, como consultas médicas ou campanhas de saúde pública.
Sabemos que não existe uma solução única para todos os contextos. Por isso, estamos também a testar diferentes abordagens e tecnologias de tradução em hospitais e centros de saúde concretos, com o objetivo de identificar as mais eficazes em cenários diversos.
A nossa missão é clara: contribuir para um sistema de saúde mais acessível, seguro e inclusivo, onde a diversidade linguística seja reconhecida como uma dimensão essencial da qualidade dos cuidados.
Sim. Na saúde, cada palavra conta. Cuidar bem também é comunicar bem — e isso começa por reconhecer que a diversidade linguística é uma dimensão essencial da qualidade, da segurança e da equidade nos cuidados de saúde.
Muitas vezes, falamos das barreiras linguísticas como um problema “do utente” e “de migrantes". Mas elas afetam também quem cuida e a sociedade em geral.
Os profissionais de saúde perdem tempo, improvisam, repetem instruções ou ficam na dúvida se foram compreendidos. Este desgaste pode levar a erros, aumentar a pressão, comprometer a qualidade do atendimento — e, no limite, ter consequências legais ou financeiras.
Mais do que uma questão individual, as barreiras linguísticas em saúde são uma questão coletiva. Quando falhamos em garantir que toda a população — independentemente da língua que fala — tem acesso à informação de saúde, todos nós ficamos mais vulneráveis. A pandemia de COVID-19 mostrou isso de forma clara: quando as instruções sobre como agir em segurança não chegam a todos, toda a comunidade sofre as consequências.
A formação está dividida em 3 módulos, que incluem exemplos práticos, atividades inovadoras e recursos extra criados por especialistas. A taxa de esforço estimada é de 5h, ao ritmo do estudante. O curso é totalmente gratuito, incluindo a sua certificação, e estará disponível até maio de 2026.
A NAU é cofinanciada pelo Plano de Recuperação e Resiliência (PRR).