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Interview02/28/2022
O curso “Sistema Terrestre, o Bem Comum Global”, que começou a 22 de fevereiro, promovido pela Casa Comum da Humanidade (Common Home of Humanity), foca as causas estruturais na base da crise climática e as formas de a combater. Em entrevista, os responsáveis da CHH destacam a relevância desta formação, no contexto atual, refletindo sobre os passos necessário para que a catástrofe climática possa ser evitada: “A mudança de paradigma de que necessitamos implica mudarmos a conceção do que consideramos como criação de valor" .
#1 É possível encontrar online muita informação sobre aquecimento global, mas é difícil identificar um ponto de viragem para o surgimento de alertas sobre este tema. Como nos afeta concretamente?
O ponto de viragem começou em meados do século XX, com um aumento na exploração de recursos e infraestruturas ecológicas, numa aceleração generalizada após a Segunda Guerra Mundial. A população humana triplicou, mas a economia global e o consumo de materiais cresceram muitas vezes mais rápido, a chamada “Grande Aceleração”. Este fenómeno criou mudanças tão marcantes no estado e funcionamento do sistema terrestre, que é também considerada por muitos como o momento do final do Holoceno e o início do Antropoceno.
Estas mudanças causaram um autêntico tsunami no padrão natural dinâmico anterior e foram avassaladoras para os sistemas sociais e económicos. Isto exige um questionar e uma reavaliação de muitas ideias fundamentais que formaram os pilares das sociedades humanas. Apesar de urgente, ainda não conseguimos ter a distância necessária para realizar uma análise crítica desses factos, fazer uma interpretação científica e conhecer implicações nas relações internacionais e nos âmbitos social, político e económico. Isto apesar de já existirem diversas comunidades e países a sofrer consequências severas decorrentes da crise climática e ambiental (como crises alimentares, guerras civis, migrações, entre outras) que são abordadas numa das secções do MOOC “The Earth System as a Global Common”. Nesse sentido, questionar padrões de vida, velhas crenças e alguns dos pilares sobre os quais construímos a sociedade de hoje é um desafio inigualável, bem como aceitar a interdependência numa escala global, fazendo esta mudança num curto espaço de tempo ao sermos capazes de agir coletivamente. A crise climática é, essencialmente, e antes de tudo, um problema de ação coletiva e da criação das condições necessárias para que seja possível a ação coletiva. E isso implica uma evolução jurídica na definição do bem comum global, do “Global Common”, que tem consequências em cascata no modelo económico e social, ou seja, tem consequências estruturais em toda a sociedade.
#2 A crise climática é debatida entre profissionais do ambiente há muitos anos, mas pouco se tem feito para proteger o nosso planeta. Se continuarmos neste ritmo, quanto tempo durarão os ecossistemas que hoje conhecemos?
O Painel Intergovernamental sobre as Alterações Climáticas (IPCC), grupo de investigação das Nações Unidas sobre as ciências climáticas criado em 1988, apontou no seu último relatório que, a menos que haja reduções imediatas, rápidas e em larga escala das emissões de gases com efeito de estufa, a limitação do aquecimento a 1,5°C ou mesmo 2,0°C estará fora do alcance. Nos 36 anos decorridos entre maio de 1986 e maio de 2008, conseguimos aumentar as emissões de CO2 na atmosfera pela mesma quantidade registada nos dois séculos anteriores. Isso significa que estamos a falhar no combate à crise climática e ambiental. Portanto, até o fim deste século, há uma possibilidade real do planeta entrar numa realidade de aquecimento “Hothouse” já nas próximas décadas, sem possibilidade de retorno, com perdas massivas de biodiversidade e alterações irreversíveis de diversos ecossistemas até o final deste século. Na Secção 1 do MOOC “The Earth System as a Global Common”, o Prof. Emérito Will Steffen, da Universidade Nacional Australiana (ANU), dá exemplos de ecossistemas inteiros que foram destruídos como consequência das alterações climáticas.
#3 Se não agirmos de imediato, podemos assistir à perda de diversidade e a um desastre ambiental ao longo do tempo. Que medidas estão a ser colocadas em prática?
Até ao momento, a estratégia de ação tem sido centrada na adaptação às mudanças climáticas, numa tentativa de reduzir danos, essencialmente centrada na redução de emissões de CO2. No entanto, é hoje claro para comunidade científica que, para além de reduzir drasticamente as emissões de gases com efeito estufa, é necessário remover ativamente o CO2 da atmosfera para evitar uma catástrofe climática. A abordagem de mitigação de danos já não poderá ser suficientemente rápida para impedir que o Sistema Terrestre atinja “tipping points” planetários - os chamados pontos de não retorno - para além dos quais as alterações climáticas poderão ser irreversíveis. Para remover CO2 da atmosfera, é necessária uma evolução jurídica, e esse é um ponto central neste curso.
#4 Considera que a tecnologia pode ajudar a inverter esta situação? De que forma?
A tecnologia sozinha não conseguirá combater a crise climática ambiental, pois a raiz desta crise está na nossa impossibilidade de agir coletivamente de forma coordenada, a nível global, com o objetivo de gerirmos as nossas interações com o sistema terrestre, do qual somos parte e de que dependemos em todos os aspetos da nossa vida. Pouco adianta o desenvolvimento de novas tecnologias, se a humanidade não construir as condições estruturais básicas para agir coletivamente e ser possível implementar e escalar a aplicação dessas soluções, num plano coletivo global. Por isso, para conseguirmos implementar as soluções tecnológicas que estão a ser desenvolvidas, não só mitigar, mas, também, para retirar CO2 da atmosfera, é necessário criar as condições estruturais básicas, ditadas pelas ciências sociais, para que possamos agir coletivamente e gerir o clima estável como um bem comum global. O primeiro passo para isso ser possível é reconhecer a existência de um bem comum sem fronteiras. De um ponto de vista jurídico, a forma de o fazer é reconhecer um determinado modo favorável de funcionamento do sistema terrestre, que corresponde a um clima estável, como um património comum da Humanidade, e geri-lo como tal. Esse é primeiro passo estrutural, para sobre ele podermos recuperar o bom funcionamento do sistema e construir um sistema de permanente manutenção, como é explicado na Secção 6 deste MOOC. Sem este reconhecimento, não há um objeto de governança global (que seria o sistema terrestre com um clima estável), o que significa que não há uma gestão e valorização da provisão do bem público global nem regras congruentes entre a provisão e apropriação do bem comum. Isto impede a construção de uma economia global verdadeiramente regenerativa, necessária para a restauração e manutenção do clima estável a longo prazo.
#5 Como funciona o acumulamento de gases na atmosfera?
Gases com efeito estufa são emitidos, principalmente, através da queima de combustíveis fósseis (petróleo, gás natural e carvão), resíduos sólidos, árvores e produtos de madeira. As alterações no uso do solo, a degradação deste e a desflorestação também resultam em maiores concentrações de CO2 na atmosfera. É importante ressalvar que as atividades humanas têm afetado substancialmente a composição biofísica do Sistema Terrestre, numa escala de tal forma impactante que se considera como um evento que dará origem a uma nova era geológica, o Antropoceno – a época geológica atual onde a humanidade se tornou um elemento determinante no estado de funcionamento sistema do nosso planeta. A crise climática e o problema das emissões são abordados no contexto do Antropoceno em quase todas as secções deste MOOC.
#6 Quais são os danos ambientais que estão diretamente relacionados a estes gases com efeito estufa?
Os gases com efeito de estufa permitem a entrada na atmosfera de ondas curtas de radiação solar, mas bloqueiam a saída da radiação infravermelha (ondas longas) da atmosfera da Terra. Por isso, os gases com efeito de estufa provocam a captura de calor na atmosfera, provocando uma alteração de toda a termodinâmica do sistema e dos padrões de circulação atmosférica e oceânica. Desta forma, transformam padrões de estabilidade relativa em padrões instáveis, com eventos extremos, ondas de calor, ondas polares, tempo extremo, afetando todas as atividades humanas e processos naturais. Estes gases também contribuem de forma direta para os problemas de saúde como doenças respiratórias causadas pelo smog e pela poluição atmosférica. Como mencionei anteriormente, todas as formas de vida fazem parte do Sistema Terrestre e dependem do bom funcionamento deste, com um clima estável, para sobreviverem. Por isso, todas as formas de vida como as conhecemos, serão afetadas pela destabilização do clima.
#7 As emissões de gases resultam de atividades como a agricultura, produção de bens e meios de transporte, entre outros. O que podem fazer as organizações/instituições para minimizar as alterações climáticas?
Há muitas soluções tecnológicas disponíveis para reduzir substancialmente as emissões de carbono e, também, retirar CO2 da atmosfera. Por exemplo, utilizar agricultura de precisão para aumentar a eficiência do uso de fertilizantes na agricultura, substituir fertilizantes à base de ureia por aqueles que deixam menor pegada de carbono, utilizar energia limpa, etc. Entretanto, se mantivermos o sistema económico global que temos hoje, montado na destruição dos ecossistemas e que não atribui valor aos serviços prestados pelos ecossistemas, não iremos conseguir que essas técnicas sejam implementadas na escala e velocidade que precisamos para travar o aquecimento global. Aliás, soluções como a agrofloresta - que integram a atividade de produção de alimentos com os ciclos biogeofísicos globais - é o caminho que precisamos de seguir. A grande questão é não olharmos uma atividade de forma isolada no sistema de que é parte e sabermos integrar cada atividade no sistema global, nos ciclos biogeofísicos globais e cooperar com eles. Isto é, a agricultura não pode ser encarada apenas como um sistema de produção de alimentos, deve ser ao mesmo tempo considerada como um sistema que também presta serviços ambientais e ser compensado por isso. Tem de ser uma atividade que coopera com o sistema global. E o mesmo se passa com o sistema económico global, para que possa dar valor ao que é realmente essencial: os processos naturais que suportam a vida e um clima estável na Terra. Só assim a economia poderá ser verdadeiramente regenerativa, ao contrário da atual economia meramente extrativa, e ser capaz de restaurar e manter o clima estável a longo prazo. Mas, este salto civilizacional de uma economia extractivista, destrutiva, para uma economia regenerativa, só pode ser realizado se existir um suporte jurídico capaz de reconhecer o bem comum que nos une a todos: um sistema terrestre com um clima estável, altamente interconectado, que opera como um único todo e atravessa todas as fronteiras. A grande questão que a crise climática nos coloca é definir o que tem realmente valor. Os serviços intangíveis das florestas e ecossistemas ou a madeira e outros bens tangíveis que podemos extrair da natureza? Dar valor ao que suporta a vida implica repensar o conceito atual de “Global Common” e perceber que a natureza não é apenas o que podemos tocar e apropriar. A mudança de paradigma de que necessitamos implica mudarmos a conceção do que consideramos como criação de valor.
#8 O que podemos fazer nas nossas casas e na nossa vida quotidiana para combater esta ameaça?
Medidas simples que podemos adotar para combater a crise climática incluem evitar usar transportes individuais e que emitam CO2, consumir produtos que têm uma menor pegada de carbono, reduzir o uso de energia elétrica no dia-a-dia e utilizar energia limpa, não desperdiçar alimentos, além de monitorizar nossa própria pegada de carbono para sabermos onde podemos melhorar. Mas o passo fundamental é termos consciência de que estes comportamentos foram resultado do facto de que interiorizamos a nossa pertença num sistema de que dependemos e influenciamos. Quando respiramos, estamos a alterar quimicamente a composição da atmosfera, tal como as árvores e plantas fazem com a fotossíntese. Estar ciente deste facto cria um sentimento de interconexão e pertença ao sistema terrestre e uma consciência global de que esse sistema com um clima estável é o nosso bem comum global que funciona como um único todo e do qual todos somos parte. Precisamos criar as condições necessárias para podermos gerir o clima estável como o nosso bem comum.
#9 O que vamos aprender com o curso “The Earth System as a Global Common”?
Neste MOOC, é possível aprender sobre questões estruturais subjacentes à crise climática. Um clima estável é o nosso património comum e todos nós somos responsáveis pela sua restauração e manutenção. No mundo real, um clima estável é um bem comum não só do ponto de vista jurídico, pois é material e juridicamente indivisível, mas também do ponto de vista económico, pois é limitado, esgotável, e rival no consumo. Estes fatores são altamente relevantes no fracasso dos mercados de carbono concebidos para reduzir as emissões globais e pela falta de esquemas eficazes para incentivar as remoções, embora o IPCC já tenha reconhecido que temos de aumentar drasticamente as remoções até 2050 para enfrentar o desafio climático. Este MOOC é ensinado por professores de renome e especialistas em clima, Direito e áreas afins, e é dedicado a todos os interessados em aprender sobre as causas estruturais da crise climática e àqueles dispostos a combatê-la. A consciência e o desenvolvimento tecnológico por si só não são suficientes para travar o aquecimento global. As sociedades precisam de criar o ambiente jurídico favorável necessário para gerir bens comuns e permitir uma ação coletiva para alcançar os objetivos estabelecidos por acordos multilaterais, tais como o Acordo de Paris, mesmo que se tenha a consciência que este também tem de evoluir.
Qual o impacto das alterações climáticas? E o caminho para a ação coletiva? Descubra as respostas com a NAU.
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